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Inep refuta contestação de historiador sobre questão do Enem

Felipe Cabral
Felipe Cabral
Publicado em 18/11/2016 às 21:00
Enem_Divulgação FOTO:

A questão 13 da prova de ciências humanas (cor branca) do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2016 - que fala sobre a política migratória do Brasil em relação aos judeus durante o Estado Novo - vem gerando debates entre historiadores. Tem repercutido a contestação feita pelo especialista Fábio Koifman que diz que o item não oferece alternativas corretas e que a afirmação da letra "E" do gabarito oficial estaria confundindo nazismo com antissemitismo, termos que, segundo ele, não poderiam ser considerados "sinônimos".

Com base no enunciado do item 13 (27 na azul, 36 na rosa e 33 na amarela), o candidato deveria responder a alternativa que explicasse corretamente a motivação da política de imigração adotada à época e, de acordo com o gabarito oficial do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a sentença correta seria a que diz "simpatia de membros da burocracia pelo projeto totalitário alemão".

Em entrevista ao G1, Koifman argumentou que a simpatia do alto escalão do governo varguista não foi ao nazismo, mas ao antissemitismo - distinção de ideias que, segundo o historiador, abre precedente para que a questão seja contestada e anulada.

Em nota, o Inep reafirmou a letra "E" como correta e retrucou dizendo que a ideologia do regime nazista teria exercido influência sobre setores do governo Vargas. "O modelo de partido único, as concepções administrativas centralizadoras, o anti-liberalismo, o controle sobre a imprensa, o uso da propaganda política de massa e a valorização do carisma, por meio do culto à personalidade do chefe da nação", diz trecho da nota.

De acordo com o professor de história do Colégio GGE, Sérgio Salles, a tese apresentada por Koifman é interessante e muito oportuna para se debater, mas não implica em erro da afirmação contida na alternativa "E". "Temos que levar em consideração que a prova [Enem] tem como finalidade abordar os conteúdos do ensino médio, como explicado na nota do Inep. É interessante o argumento levantado pelo historiador, porém bastante específico ao meio acadêmico. O gabarito atende ao enunciado e ao público submetido ao exame", justifica Salles.

Defendendo o gabarito oficial, Salles explica que a perseguição anti-semita não chegou a acontecer de fato no Brasil e destaca a proximidade da cúpula do governo Vargas com a Alemanha nazista. "Dentro do governo Vargas havia figuras que realmente eram defensoras do regime nazista e que, inclusive, queriam uma aproximação maior do que a que já existia com o país germânico", aponta.

Confira a íntegra da nota do Inep:

A questão 13 da prova branca aborda a política imigratória do Estado brasileiro relativa aos judeus, na década de 1930. O Texto-base da questão evidencia algumas restrições e percalços a que foram expostos no Brasil indivíduos que fugiam de países onde prevaleciam perseguições e extermínio de populações semitas. O enunciado da questão indaga o respondente sobre uma das causas da ocorrência, nesse contexto específico, de tais medidas e dificuldades. O gabarito, alternativa “E”, relaciona esse processo à aproximação de setores da alta cúpula do governo Vargas com a perspectiva política alemã durante a emergência do nazismo. A narrativa na qual se baseia o gabarito é que a estruturação do regime nazista teve como uma de suas ideologias motrizes o antissemitismo. Esse ideário exerceu certa influência sobre setores do governo Vargas, assim como o modelo de partido único, as concepções administrativas centralizadoras, o anti-liberalismo, o controle sobre a imprensa, o uso da propaganda política de massa e a valorização do carisma, por meio do culto à personalidade do chefe da nação.

É certo que o antissemitismo teve raízes mais profundas e disseminadas que as ideologias totalitária e fascista e parece ser este o principal elemento destacado na crítica à questão. Desde o final do século XIX, vários cientistas, intelectuais e lideranças políticas em países de democracia liberal, como os Estados Unidos, por exemplo, formularam teorias e políticas de melhoramento racial que previam deportações ou restrições à entrada de judeus. Porém, os chamados eugenistas também previam medidas similares relacionadas aos ciganos; nutriam concepções negativas quanto as chamadas raças amarelas (orientais), e pregavam a esterilização de afro-americanos.

A eugenia cobria um espectro de classificações e discursos mais amplos que o antissemitismo. Tais concepções não são sinônimas e o antissemitismo é algo muito mais antigo do que a Eugenia. No Ocidente, o antissemitismo, antes disso, se revestiu de componentes religiosos. Ao longo de séculos, a discriminação e a perseguição aos judeus foi parte de discursos oficiais e da ação inquisitória da Igreja Católica na Europa e nas Américas. Mas, mesmo na época de maior afirmação das ideologias raciais e nacionalistas, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, é preciso destacar o quanto o antissemitismo foi abastecido por outra forte ideologia: o anticomunismo. Nos Estados Unidos e em vários países que adotaram medidas de restrição à entrada de judeus, a defesa do melhoramento racial foi muitas vezes instrumentalizada por planos políticos e sobrepujada por suspeitas ou alegações de envolvimento dos imigrantes judeus com ações anarquistas e comunistas. No Brasil, essa associação tem forte poder explicativo, pois esteve na justificativa do Golpe por meio do qual foi instalado o Estado Novo: uma reação ao chamado Plano Cohen (Documento divulgado pelo Governo Vargas, que supostamente continha um plano construído pela Internacional Comunista para a tomada de poder no país, e cujo nome remetia ao líder comunista húngaro judeu Béla Kohn). O General Góes Monteiro, um dos principais artífices do Golpe de 1937, esteve em treinamento na Alemanha nessa década e, antes do alinhamento com os EUA, chegou a externalizar publicamente sua simpatia pelas Forças Armadas e pelo projeto de regime em vias de construção na Alemanha.

Voltando à questão, é preciso esclarecer que um instrumento avaliativo padronizado aplicado em larga escala pode exigir na construção das questões algum tipo de síntese ou esquematização de conteúdos, a depender do perfil do respondente a que se destina e do nível de dificuldade almejado na consecução da tarefa cognitiva. Na prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias do Enem, estão entre os critérios que balizam a construção das questões: a precisão conceitual e factual, o tipo de linguagem do público-alvo e o nível de disseminação do objeto de conhecimento junto aos estudantes do Ensino Médio. A questão deve estar correta do ponto de vista das pesquisas acadêmicas, mas deve ser, ao mesmo tempo, compreensível para o estudante concluinte do Ensino Médio. Na estrutura de um item do Enem, as alternativas incorretas contêm percursos plausíveis de entendimento, mas errôneos do ponto de vista da situação-problema comunicada no enunciado. As alternativas devem ser plausíveis do ponto de vista do que é ensinado nas escolas e podem remeter, algumas vezes, a ideias de senso comum, ultrapassadas do ponto de vista acadêmico, mas ainda persistentes entre os alunos menos proficientes. O gabarito contém o complemento ou resposta correta à indagação presente no enunciado, mas nem sempre pode cobrir todos os aspectos e/ou nuances mais específicos sobre o tema focalizado, pois deve ter uma extensão que não inviabilize a resolução do conjunto total do teste no tempo determinado.

No caso da questão 13, um gabarito que mencionasse a “adesão” de membros da burocracia varguista apenas à ideologia eugenista, como é a proposta contida na crítica à questão, implicaria perda de precisão interpretativa, pois, como afirmado acima, o antissemitismo no contexto brasileiro, especialmente fora do campo intelectual, também se filiou a uma ideologia anticomunista (que estigmatizava o refugiado judeu como subversivo), uma das ideias-força que justificaram a emergência do nazismo e fascismo na Europa. Entre outros autores, essa interpretação está contida e bem documentada nas pesquisas de Maria Luiza Tucci Carneiro (2001, 2013).

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)