Semana passada, achei curiosa a notícia estampada no JC: “Faltam cadáveres na UFPE”. A reportagem mostrava que estava difícil liberar cadáveres para o estudo dos alunos de medicina, no departamento de anatomia. Quando não há cadáveres, os alunos são obrigados a praticar com órgãos de plástico.
Acabei recordando uma história que li, faz muitos anos. O texto é de Humberto de Campos, escritor e jornalista maranhense que viveu nos anos 30 e cujo estilo influencia também o meu trabalho. A crônica foi escrita no Rio de Janeiro, em 1931. Segue:
“... O diretor da Faculdade de Medicina fluminense abancou-se a meu lado, e entramos a palestrar. Palestra de barca, feita sob medida. Palestra em que se escolhe o tamanho do assunto de acordo com o tempo que falta pra barca atracar.
- O senhor não imagina – começou o ilustre homem da ciência – o senhor não imagina como ando contrariado aqui em Niterói. A falta de...
- De dinheiro? O doutor anda perseguido? Console-se comigo.
- Não, não senhor! – atalhou ele – Pelo contrário! Os cadáveres é que andam perseguidos por mim.
- Ahn!
- Como o senhor não ignora, de todas as carreiras, a medicina é a que atrai maior número de rapazes. Cada ano saem das escolas superiores mais de mil brasileiros jovens, autorizados a exercer o seu apostolado na pele, na carne e no tutano do próximo. E cada ano entram para os lugares deles novos alunos. Como consequência, começaram a faltar corpos humanos para os estudos. A procura valorizou o produto. E de tal modo, que é mais fácil, hoje, um cadáver encontrar um estudante do que um estudante encontrar um cadáver. Em Niterói, então.
- Não morre ninguém?
- Morrer, morre. Mas a questão, é que o defunto que vai pra Faculdade, servir de de campo de pesquisas ao estudante, é unicamente o que passa pelo necrotério: é preciso que o sujeito haja sido assassinado e não tenha parente que o sepulte.
- O Doutor já experimentou mandar matar alguém?
- Já, os rapazes da Faculdade têm animado alguns valentões a enfiar a faca no bucho alheio. E o resultado tem sido nulo. Duas ou três mortes e acabou-se. Que são, porém, dois ou três defuntos para mais de oitocentos rapazes com bisturi?
Fez-se um silêncio ligeiro, e o doutor continuou, com a voz macia:
- O senhor não leu o que alguns jornais de Niterói publicaram a seu respeito?
- Não, senhor.
- Pois, olhe: eu no seu lugar não aguentava. Ia na redação e metia seis balas no primeiro sujeito que aparecesse.
- Mas em qual jornal, Doutor?
- Em qualquer um. A imprensa é uma só. E o senhor está na obrigação de vingar-se. Não aguente desaforo.
E ao meu ouvido:
- A Faculdade dá-lhe quinhentos mil réis pelo defunto.
- E se eu morrer, Doutor?
O sorriso dele se iluminou.
- Aí eu pago o dobro!