DITADURA MILITAR

Diplomatas gays foram expulsos durante a ditadura, segundo documentos secretos

Um dos principais impactos da ditadura militar brasileira em cima das relações internacionais e a atuação dos diplomatas foi justamente a interrupção de carreiras

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Myllena Wu

Publicado em 19/05/2024 às 9:09 | Atualizado em 19/05/2024 às 16:09
Notícia

Em meio à repressão da ditadura militar, em meados de 7 de março de 1969, um relatório secreto chegou à mesa do ministro José de Magalhães Pinto, em Brasília.

Na época, o chefe do Itamaraty costumava receber documentos sigilosos sobre a vida pessoal de diplomatas do Ministério de Relações Exteriores.

Esse documento, após meses de análises, indicava que alguns profissionais brasileiros deveriam ter suas carreiras encerradas por meio de aposentadoria compulsória.

Isso porque eles eram homossexuais e o governo militar entendia que essa “incontinência pública escandalosa” poderia “prejudicar o decoro e a reputação do país”.

Arquivo Nacional

Imagem de documento secreto da Comissão de Investigações - Arquivo Nacional

Dados mostram que pelo menos sete diplomatas e outros seis profissionais administrativos do Itamaraty foram expulsos por serem homens gays.

A Comissão de Investigações Sumárias (CIS) também recomendou que outros dois oficiais de chancelaria e 10 funcionários internos passassem por exames médicos e análises sociais para verificar a possível suspeita de homossexualidade.

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Um dos diplomatas afetados foi Ricardo Joppert, que foi oficialmente afastado em 29 de abril de 1969, enquanto atuava como segundo-secretário no consulado de Gotemburgo, Suécia.

Ele afirmou em algumas entrevistas que só soube de seu afastamento através da imprensa na época.

Arquivo Nacional

Imagem de documento secreto da Comissão de Investigações - Arquivo Nacional

Só quase duas décadas depois, Joppert conseguiu retornar ao cargo após um memorando da primeira Comissão de Anistia sugerir que ele fosse reintegrado ao Ministério de Relações Exteriores.

No entanto, mesmo com essa recomendação, ele ainda precisou passar por exames médicos para efetivar seu retorno.

Alguns que passaram por violações semelhantes nunca conseguiram retornar aos seus cargos:

  • Como aconteceu com o primeiro-secretário do Nísio Medeiros Batista Martins, que morreu antes da revisão proposta pela anistia.
  • Também teve Dionysio Fernandes Borges, funcionário administrativo do MRE, que lutou pela carreira, mas continuou afastado por conta do preconceito mesmo anos depois.

A Comissão de Anistia de 1980 sugeriu que o funcionário fosse submetido a exame médico, psiquiátrico e psicológico, no Centro de Medicina Aeroespacial da Aeronáutica, que expediu diagnóstico comprovando a alegação de homossexualidade patológica [sic] e emitindo parecer de que o funcionário seria incapaz para o fim a que se destina", indica o parecer da Comissão de Anistia.

"Tendo em vista os motivos acima, a Comissão decidiu informar que a reversão do funcionário seria contrária aos interesses da Administração”, conclui.

Nem mesmo elogios oficiais e profissionalismo foram capazes de proteger os funcionários contra essas violências políticas.

José Eduardo Brasil Vivacqua, oficial de chancelaria expulso por ser homossexual, também não “atenderia aos interesses da administração”, apesar de não possuir registro “que desabonasse sua conduta funcional”.

O que era a Comissão de Investigação Sumária?

Arquivo Nacional

Imagem de documento secreto da Comissão de Investigações - Arquivo Nacional

A Comissão de Investigação Sumária de 1969, também conhecida como CIS-69, foi criada por meio do Ato Institucional nº 5 e designada por uma portaria em 3 de fevereiro do mesmo ano.

Essa organização tinha como objetivo reunir informações sobre a vida pessoal dos membros do Itamaraty.

A CIS-69 buscava “elaborar um conceito sobre cada funcionário, através de depoimentos dos chefes dos vários órgãos da Secretaria de Estado, de autoridade da Casa, dos Chefes das Missões diplomáticas e repartições consulares, solicitados estes últimos por circular-telegráfico”.

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Além da homossexualidade, os motivos indicados pela comissão para expulsar profissionais do Ministério de Relações Exteriores eram também:

  • Vício de embriaguês;
  • Vida irregular;
  • Instabilidade emocional;
  • Indisciplina funcional;
  • Insanidade mental;
  • Risco de segurança;
  • Uso de entorpecentes e motivos de saúde.

Um dos casos mais famosos da atuação da CIS-69 foi o pedido de afastamento do cantor Vinicius de Moraes devido ao “alcoolismo”.

No entanto, a comissão sugeriu que o “homem de letras e artista consagrado” fosse aproveitado no Ministério da Educação e Cultura, onde seus serviços poderiam ser “melhor utilizados”.

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Murilo Mota, doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), realizou publicação científica sobre o tema no ano passado.

Segundo seu estudo, o principal impacto da ditadura militar brasileira sobre as relações internacionais e a atuação dos diplomatas brasileiros foi justamente a interrupção de carreiras.

Mota pontua que “ao excluir essas pessoas do Ministério das Relações Exteriores, a ditadura militar impediu processos de formulação e execução da política externa brasileira democráticos”.

O que mudou hoje em dia?

Na atualidade, há esforços para tornar a diplomacia brasileira mais inclusiva e representativa da sociedade do país.

Desde a década de 1990, houve a eliminação de barreiras institucionais que limitavam a ascensão das mulheres na carreira diplomática.

Além disso, o sistema de cotas para pessoas negras foi adotado a partir de 2010, antecipando a Lei Nº 12.990, de 9 de junho de 2014, que estabeleceu uma cota de 20% no funcionalismo público para pessoas negras.

A Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) desempenha um papel fundamental na prevenção de violações políticas no Ministério das Relações Exteriores (MRE).

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O sindicato defende uma reforma do regime jurídico do Itamaraty, reconhecendo que a carreira diplomática e a sociedade brasileira passaram por mudanças significativas desde a adoção do regulamento em vigor (Lei nº 11.440 de 29 de dezembro de 2006).

A ADB destaca a importância da diversidade, reconhecendo que a pluralidade de origens, culturas, etnias, gêneros e orientações sexuais enriquece o tecido social do país.

A associação dos diplomatas brasileiros reflete também que a importância da valorização dos regimes democráticos permite ao Brasil, além de evitar sanções internacionais, um maior diálogo e negociação com diversos países:

“A democracia mantém nossas portas mais abertas para outras nações”.

Com informações de Metrópoles

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